18 February 2006

Crônica 5 - Estamos em Outubro de 2005 e estamos superlotados de serviço. Ainda não conseguimos ter um domingo sequer de descanso. Às vezes a única hora de relaxamento é a hora da missa, que não perco, pois lá está um dos corais mais bonito que já ouvi. O coral é composto por maioria feminina, mas quando há poucos homens o efeito não é tão mágico. Já percebi que os homens vão mais à missa das 8 horas. Nela o coral fica mais bonito. O efeito é avassalador. As músicas são metade em português e metade nas línguas quimbundo e obundo, e é nestas línguas que a magia se faz. As vozes se entrelaçam em um arranjo fora do comum, fazem uma harmonia tribal que se mistura com a acústica da igreja. As vozes femininas fazem os malabarismos agudos e os homens dão a base certa para que, juntamente com uma percussão de tambores de couro cru, a música nos faça chegar ao paraíso. Mas não é qualquer paraíso, é o paraíso da Mãe África. Eu fecho os olhos e a tentação de ver as tribos, os quimbus, os animais e ouvir seus urros, torna tudo um momento excitante e bastante especial, bem diferente do efeito que realmente a Igreja desejaria obter.

Como a temporada de viagens havia começado, é bom dar uma olhada no mapa de Angola para sentir a distância que foi percorrida por nós em todas estas jornadas. O primeiro mostra a divisão política do país com suas 18 províncias, capitais e cidades. O segundo mapa mostra todos percursos realizados. Este mapa está inserido ao final na 8ª Crónica.



Em 01 de Setembro, a equipe viajou para Cabinda, que é uma província no extremo norte de Angola. Se você observar no mapa Cabinda é aquela língua, separada do resto do país, mas que pertence a Angola e o Governo Angolano não se separa dela em hipótese nenhuma, embora a grande maioria da população de Cabinda deseje a cisão. A razão é que Cabinda está sobre um dos maiores lençóis petrolíferos da África. A descontinuidade do território foi resultado de acordos do passado para que o Congo tivesse acesso ao mar. Toda esta confusão torna aquela região a mais instável do País, atualmente, com a presença maciça do exército garantindo uma ordem precária. A equipe foi escoltada durante todo o trajeto na estrada. Esta levaria a fronteira com o Congo. A equipe atravessou a fronteira, após o término dos trabalhos e conheceu Port Noir, uma uma linda cidade cosmopolita no Congo. O idioma é francês, o que fez o nosso inglês macarrónico ser a língua oficial da estadia.

Em 20 de setembro viajamos para o sul do país. A intenção era fazer o levantamento do trecho entre duas cidades da província do Cunene, região que faz fronteira com a Namíbia. As cidades se chamam de Ondjiva e Xangongo. A segunda intenção era entrar na Namíbia (que fica a 45 quilômetros de Ondjiva) e fazer um safari. O que é bom que se diga, é que a viagem não foi no Iliushin russo (texto anterior). Graças a Deus estávamos nas boas mãos de Heather, nossa comandante sul-africana, boa de manche, que não deixou o avião fretado balançar nos céus nublados de Angola.



Ao chegarmos, fomos conhecer as instalações do INEA e almoçar com os pilotos. Depois fomos à Namíbia, que fica a 70km de onde estávamos. Lá vimos que a opção safari havia sido frustrada, pois as reservas onde existem os animais selvagens estavam fechadas. Resignados tivemos que voltar e deixar esta, que seria uma experiência única, para outra oportunidade. Nossos cicerones chamavam-se Paulo King, diretor provincial do INEA e Júlio Cuanza, Diretor provincial da divisão de obras. Duas pessoas que com o passar do tempo foram nos proporcionando experiências singulares sobre esta região. A nossa equipe era grande, composta por 4 engenheiros angolanos, dos quais um deles era o Dr. Herculano, e três brasileiros, Luiz Maranhão, Sidclei e eu.

Voltando da fronteira, nossos guias nos levaram a um lugar chamado Oihole, que é um memorial ao Rei Mandumbe. Neste local comecei a entrar em contato com histórias das guerras que assolam esta região, por ser ela a fronteira mais próxima com a África do Sul. Histórias passadas e presentes que são estranhas ao nosso universo, mas fazem parte do cotidiano deste país e, principalmente, desta região.



O Oihole era o centro do reino onde Mandumbe exercia seu poder com mão de ferro na primeira década do século passado. Seu reino compreendia a região sul de Angola e o norte da Namíbia. Ao todo possuía 20 esposas. Sua justiça era sumária, mas dando “alguma chance” ao infrator. Em diversas situações, o prisioneiro a ser julgado, era obrigado a subir em uma palmeira das mais altas que tinha no quimbu (vila parecida com aldeias indígenas), longe 500m de distância da cadeira do rei. A uma ordem sua ele teria que descer da árvore e estar na sua frente em um tempo tão diminuto que só os mais preparados conseguiam. Se não alcançassem a morte era iminente. Esta trajetória teve um final trágico quando Portugal e Inglaterra cercaram o reino por Angola e pela Namíbia respectivamente. Após uma feroz resistência, Mandumbe ao ver que iria ser capturado matou seu fiel cão, dois guardas-costas e se matou com um rifle em 5 de Maio de 1916. Na história dos vencidos, eles elegem seus heróis através do exemplo de bravura e pelos ideais de liberdade.

O sítio do memorial é magnífico, altamente convidativo e tem uma atmosfera que leva a contemplação. O mausoléu é esplendidamente bem concebido. Baseado na folha da omufiate, planta que integra a paisagem do sítio desde a época do Rei Mandumbe. Todos ao chegar têm que cumprir um ritual de reverência ao rei, colocando um ramo de omufiate em sua sepultura. Na instauração do sítio, houve a presença dos presidentes de Angola e da Namíbia. O lugar tornou-se um centro turístico com museus, maquetes do local onde Mandumbe vivia com seu estado-maior, bares, hotel, lojas etc.


Caminhos do Oihole Posted by Picasa

Caminhos do Oihole

Folha do omufiate na minha mão e no mausoléu de Mandumbe


Mausol�u de Mandumbe Posted by Picasa


Ritual a Mandumbe (Sepultura) Posted by Picasa

Por incrível que possa parecer, neste local tão distante de nossa terra, encontramos um brasileiro fazendo um documentário. Você tem alguma dúvida de onde ele era. Claro, do Ceará, confirmando a máxima de que o cearense vai para qualquer lugar.


Museu ao ar livre - Maquete do s�tio Posted by Picasa


Uma das maquetes do s�tio Posted by Picasa

Ao chegar em Ondjiva, fomos visitar a cidade e deparamos somente com construções novas de cerca de 2 anos para cá. Foi quando Paulo King nos falou que a cidade fora bombardeada a cerca de 3 anos e os únicos prédios inteiros haviam sido a Igreja (sem telhado) e o hospital. O resto era escombros. Esta guerra foi contra a UNITA (facção opositora ao regime que agora se constituiu em partido político), uma guerra civil que dilapidou tanto economicamente quanto moralmente o país. A guerrilha, apoiada pelos Estados Unidos encheu de minas o interior, transformando o país em uma pátria de pernetas, e matando boa parte da fauna. Só quem a deteve foi a morte de seu líder máximo Savimbi. Após seu assassinato a UNITA baixou armas e Angola entrou neste período de normalidade política que vivemos hoje.


Destro�os-Monumento em Ondjiva Posted by Picasa

No jantar conhecemos Daniel, um senhor que havia sido o primeiro director provincial do INEA após a guerra. Ele nos contou que tomou posse embaixo de uma árvore. Como monumento, a cidade mantém um monte de escombros de um prédio bombardeado, para lembrar o que passaram em uma das guerras mais esdrúxulas que o país viveu. Uma guerra contra o seu próprio povo.

Não há registros de décadas sem que haja algum conflito armado, pois no período pré-aparteid, a África do Sul infernizava os países da África Austral (cone sul) com seu poder belicista, transformando, por consequência, o exército angolano no mais bem equipado, bem treinado e mais respeitado exército de toda a África. Todo o apoio militar foi oferecido pela antiga União Soviética. Os anos 74, 81, 93 foram anos especiais de conflito aqui em Angola. Isso para falar em épocas recentes, pois a independência de Portugal foi conseguida somente no ano de 75 por uma tríade de forças revolucionárias onde se sobressairia o herói nacional Agostinho Neto.A gratidão que os angolanos têm com o Brasil é que nos fomos o primeiro país a reconhecê-los como nação independente.

Em que pese tudo isto, o mais interessante é que o povo reagiu sem traumas a esta sua história recente e passada de combates. O nosso cicerone Júlio fez sua narrativa de guerrilheiro como se fossem passagens naturais da vida de cada um. Histórias de como o caminhão em que ele estava foi jogado a 2 metros de altura por uma mina e ele perdeu um amigo e parte do seu pé. Falou da sensação de vácuo e em seguida do calor insuportável que sentiu antes de apagar. Contou passagens de emboscadas realizadas sobre as brigadas inimigas, as táticas empregadas e de como teve que matar seus adversários quando foi preciso. Contou da dificuldade de se certificar que seus parentes estavam bem após cada bombardeio, quando tudo era escombro e morte por todo lado. Toda esta conversa era passada de forma consciente e, pasmem, com bom humor. O gigante Júlio Cuanza realmente é uma pessoa diferenciada, de uma lucidez e estado de espírito sem similar, mas em todos com quem conversamos nesta região, percebemos a ausência de marcas de qualquer espécie em relação aos conflitos. Tudo nos foi mostrado, locais de vitórias, escombros, destroços de tanques ainda na estrada que estávamos a trabalhar, monumentos em valas onde estavam enterrados 300 soldados mortos em uma batalha contra a África do Sul.


Blindado danificado por um morteiro Posted by Picasa


Durante o trabalho, não consegui identificar nenhum exemplar da fauna original da África, como era meu desejo (nem mesmo o tal macaquinho apareceu), mas na flora eu tive realmente várias surpresas. O clima da região é o tropical seco, com pouca humidade, causando problemas nos lábios e narizes de nós novatos. A vegetação da região, que constava no atlas de Angola, era denominada de chana. Sem saber o que seria começamos a observar certas palmeiras idênticas às carnaúbas, arbustos espinhosos iguais a jurema, cactos semelhantes a palma. Mudando a disposição e a quantidade (a chana é bem mais rarefeita) eu diria que estivera rodando mais de 7000km para encontrar algo parecido com a caatinga. Assim pode-se concluir que aquela teoria da Pangeia, junção dos continentes nada tem de estapafúrdia. A grande exceção nessa semelhança toda está a cargo de uma árvore excepcional chamada Imbundeiro. Esta árvore monumental é parente do baobá e se espalha por toda a Angola/África. Seu tronco pode chegar a 5m de diâmetro tendo exemplares com 8m.


Chana. Semelhante a Caatinga? Posted by Picasa


Imbundeiro do final do trecho. Posted by Picasa

Chegamos a Xangongo onde fizemos uma parada técnica em uma espécie de mercado ao ar livre. Neste local, conhecemos dois pernambucanos, de Angelim, que estão a trabalhar em um projeto de irrigação no rio Cunene, similar aos do rio S. Francisco. Com todas estas evidências, confirmei assim que o nordeste está mais perto do que eu imaginava.


Mercado de Xangongo Posted by Picasa


Herculan, Sidclei e Maranh�o, um bodinho em Xangongo. Sobreviveram.. Posted by Picasa


Encontro com conterr�neo de Angelim(camisa azul) Posted by Picasa

Após a parada, que levou mais tempo do que imaginávamos devido a confraternização com nossos conterrâneos, fomos ter com o governador da província do Cunene, Pedro Mitunde. Ficamos sabendo que o próprio governador foi vítima da guerra, sofrendo um atentado de uma mina preparada embaixo de sua mesa de trabalho. O resultado foi uma perna mecânica que o acompanhará pelo resto de sua vida.


Governador da prov�ncia do Cunene Posted by Picasa

Chegamos então a travessia do rio Cunene. É um rio portentoso que faz o papel do rio S. Francisco, com cheias que se espalham em um imenso vale, se constituindo em um impulsionador econômico para esta região seca. Infelizmente as histórias das guerras continuaram. A ponte de 900m que era usada para vencer o Cunene foi dinamitada a cerca de 4 anos por um guerrilheiro maluco da UNITA. A ponte é um alvo estratégico, pois esta já é a segunda vez que ela é dinamitada.


Rio Cunene pela ponte destru�da. Posted by Picasa


Banho no Rio Cunene Posted by Picasa

Uma última surpresa nos aguardava ao final do dia. Esta foi de ordem emocional e proporcionada por um dos membros da equipe. Após o almoço, rodamos mais 20km até uma fazenda. Esperávamos por uma experiência que poucos haviam tido. Até então eu estava tirando todas as fotos, mas a partir daí eu passei a máquina para Sidclei, pois iria presenciar um encontro entre pai e filha após trinta anos de separação, ou seja era a primeira vez que se veriam, desde que a menina havia nascido. A história contada por ele é que havia namorado a mãe da menina quando da implantação da estrada. A garota nasceu e em meio a uma guerra e outra perderam o contato. Procurou muito por elas este tempo todo, mas nenhum sinal de mãe e filha. Casou e a vida passou. Teve 4 filhas e ao dar uma entrevista na rádio sobre a situação das estradas no país, foi reconhecido por uma das irmãs (por parte da mâe) da moça. Ela entrou em contato com ele e assim nós estávamos ali para presenciar este reencontro. Claro que os comentários foram muitos. A mim, achei que não cabia julgar uma situação desta, sem estar envolvido nela.

Quando o carro chegou, a moça que desceu era bonita e estava vestida com blusa e um sarongue típico do interior de Angola, estava descalça. Ao descer o pai se identificou e não houve nenhuma das cenas fortes que esperávamos. A moça parecia que não acreditava no que estava se passando, por mais que o pai se esforçasse em explicar. Foi oferecido refrigerante a ela e soubemos que era analfabeta e morava numa espécie de “senzala” da fazenda. Tinha 2 filhos uma menina e um menino. Aquela situação perdurou até a hora de irmos, quando o pai soube que não havia comida em sua casa. Isto emocionou a todos e demos tudo o que tínhamos nas duas camionetes da expedição, o que não era pouco. O encarregado da fazenda nos disse que infelizmente ela não iria lucrar muito. Só aproveitaria o que comesse ali na fazenda, pois o marido e os outros homens da senzala vão se apossar de tudo o que ela levar. Herculano jurou que iria procurar compensá-la pelo tempo que se manteve ausente, e tentaria tirar ela daquela situação tão difícil.

Ao nos afastar, quando aquela figura esguia andava para o carro que a trouxera, o rádio do carro de Paulo King, que passara todo o dia tocando músicas brasileiras e caribenhas, tocava uma música com um coral tribal, parecido com as que eu ouço na Igreja. São histórias da Mãe África.


Volta para Luanda, com J�lio e Paulo King Posted by Picasa

2 comments:

Coral said...

Debió ser una experiencia muy Bonita.


Saludos.

Anonymous said...

Meu marido recebeu uma proposta para trabalhar em Cabinda, mas ainda bem que ele não foi, acho que é um sítio perigoso...muitos mercenários...guerra...fiquei aliviada por ele não ter ido...
Mas, as propostas para trabalhar em África continuam, qualquer dia desses ele vai....

Muito bem escritas as suas "crónicas" com qual acento vc prefere?..rsrsrs

Um abraço fraternal