09 March 2006

Crônica 6 - Outubro 2005.As viagens que estamos fazendo pelo interior de Angola são um misto de incertezas com o que vamos encontrar e muito esforço para chegar e concluir o que deve ser feito em meio a estradas em condições lastimáveis. Mas a constante nestes levantamentos são ainda as histórias de guerras e as paisagens espetaculares que mostram uma terra de contradições entre suas riquezas naturais e as condições sub-humanas do povo.

Acabamos de chegar de uma região distante 250 km ao sul de Luanda. Fomos a uma cidade litorânea chamada Sumbe. O levantamento teria que chegar até Quibala, distante 150km, passando, no meio do percurso, por uma cidade que está no topo do planalto central, cama-se Gabela.

Viajamos pela a estrada denominada EN 100, que faz as vezes da nossa BR-101. É uma rodovia litorânea que ainda pretende cortar o país de norte a sul. Está em bom estado, com alguns buracos, que não poderiam faltar. Fui com Armando, arquiteto do INEA, que foi me mostrando todos os pontos turísticos do sul de Luanda. Tive um especial interesse em uma construção de dois andares, isolada, em cima de uma pequena elevação à beira mar. Armando informou tratar-se do museu da escravatura. É preciso visitá-lo.

Museu da Escravatura.


A estrada passa por áreas à beira-mar e nada destas regiões lembram o astral das cidades praieiras do Brasil. Tudo rareia, até a vegetação. Parece uma paisagem marciana, onde, às vezes, não se encontra o menor sinal de presença humana. Passamos pelo Mirador da Lua, onde eu pensava que este nome se devia a algo ligado ao local ser utilizado por namorados para apreciarem a beleza da Lua no mar e, quem sabe, “curtir” uma “corridinha de submarino”. Para a minha surpresa, o nome não tem nada a ver com a visão romântica que eu estava tendo. É por causa da paisagem que de tão excepcional e desabitada, parece lunar. Não vou perder tempo descrevendo. É melhor ver abaixo. O visual é impressionante e insólito.









A Lua vista da Terra de Angola

Direto da Lua sem o traje

Conheci, mais à frente, uma fruta que não temos no Brasil. Chama-se Maboc e tem uma casca amarela e dura, que deve ser quebrada para se ter acesso ao conteúdo. Este é formado por caroços envolvidos por uma suculenta polpa amarela. A graça é colocar aqueles caroços na boca e chupar o sumo da polpa. Caí na besteira de tentar separar a polpa do caroço. Deu calo na língua. Ela não sai. O gosto é ácido e muito bom. Parece uma mistura de maracujá com pêssego. Havia outra que se chama môngua, parecida com o Cupuaçu, é a fruta do Imbundeiro, árvore que é um dos símbolos de Angola, mas chega de novidades em relação a frutas.


Delícias da África - O Maboc Posted by Picasa

A paisagem da viagem variava de forma abrupta. Hora se tornava uma savana, hora voltava para a paisagem litorânea e víamos sempre as vilas formadas por habitações em estuque coberta de palhas. No meio da viagem aparece um vale que parece ter sido pintado a mão. Depois eu soube quem era o artista daquela obra.


Aldeia na Estrada Nacional que leva à Sumbe. Posted by Picasa

Chegamos finalmente a Sumbe, uma cidade litorânea, que não tem nada a ver com as do Nordeste. Pois o estilo africano impera na paisagem. Todas as habitações que recepcionam os visitantes têm as características de quinto mundo, que são bem peculiares aqui. A medida que avançamos na cidade os prédios foram melhorando de aspecto, até a orla marítma, onde estavam os hotéis e as características universais das praias (calçadão, coqueiros, bares, restaurantes, etc). A cidade é a maior produtora de lagosta do país. Então adivinhe qual foi o meu jantar à beira-mar em frente ao hotel? Bem, nem tudo é só sacrifício. Se você gosta, ela veio grelhada e acompanhada de uma salada que não deu para evitar, como tenho feito com as verduras não cozidas daqui. Estava saborosíssima!


Chegada à Sumbe - Pelo menos o mar está ali. Posted by Picasa


Restaurante à beira-mar - Lagosta à vista. Posted by Picasa


Bem, nem tudo é sacrif�cio aqui em Sumbe. Posted by Picasa

Voltando a labuta, o trecho seria bastante difícil, pois eram 150km com uma serra no meio, onde sairíamos do nível do mar para altitudes de 1500m. Não havia como pernoitar nas cidades lindeiras (Gabela e Quibala). Não havia estrutura de hospedagem, pois a guerra simplesmente dissolveu e os investimentos ainda não chegaram como em Ondjiva (Crônica anterior, lembra?). Teríamos que voltar sempre o percurso levantado para dormir em Sumbe.

Fomos trabalhando naquela estrada de difícil trafegabilidade, em uma situação tal que nunca espero que as nossas cheguem, embora esteja perdendo a esperança, pela constatação de descaso como estão a tratar a infra-estrutura brasileira. É possível que algum dia possamos estar com problemas que Angola hoje tem que enfrentar. A completa perda de suas ligações territoriais. Pelo menos este país tem uma justificativa. Foram 27 anos de guerra. E nós, qual a nossa justificativa?
A vegetação inicial é dominada pelo imbundeiro, o que já a torna bem diferente da nossa. As paisagens são singulares e não identifiquei nada aqui parecido com a terra brasilis. Comecei então a ver um outro diferencial na paisagem, algo que transformava a região de flora rarefeita para um vale onde tudo é verde e ordenado, onde a agricultura é abundante e agente de mudança do ambiente. Até o povo tem o astral melhor e aparenta mais saúde. Isto tudo é causado pelo rio Keve, que desde antes da nossa chegada a esta região vêm nos acompanhado e proporcionando momentos de puro deleite para os olhos. O rio Keve dá condições para a região fazer uma das maiores agriculturas do país e ser um motor de transformação.


O Vale com o artista presente Posted by Picasa


O Vale e o artista - Paisagens de Angola Posted by Picasa


Agricultura do Rio Keve. Posted by Picasa


Verdura barata do rio Keve. Posted by Picasa


Mais produtos do Keve na vila Cachoeira. Posted by Picasa

É sinônimo de beleza, pois por onde ele passa, tenha a certeza que você terá uma linda visão. Chega a ser abusado, fazendo coisas que muitos rios não têm oportunidade nem características físicas para tal, como belas cachoeiras e pontes com vãos em arco, infelizmente sem utilização devido aos conflitos. Sei que devo estar exagerando, mas o impacto que um elemento transformador deste gera em uma região castigada como esta não pode ser tratado diferente. O Keve é realmente um artista da natureza.


Cachoeira do Rio Keve Posted by Picasa


Cachoeira do Rio Keve Posted by Picasa


Pontes do Rio Keve Posted by Picasa


Afluente do Rio Keve. Posted by Picasa


Estou aqui mesmo! Posted by Picasa


Sidclei e os miúdos da vila de Cachoeiras Posted by Picasa

A medida que avançávamos e deixávamos as belezas do Keve para trás subíamos em direção a Gabela. Esta cidade parece que foi congelada no tempo. Ela era a base de uma época onde o cultivo do café era o impulsionador da região. Ela situa-se em uma altitude de 1100m acima do nível do mar e seu aspecto é de uma cidade dos anos 50/60. Os conflitos aparentemente não fizeram estragos, se bem que a infra-estrutura da cidade sofreu demasiadamente (uma subestação toda montada foi para o espaço).


Gabela, cidade congelada nos anos 60. Posted by Picasa

Estou a falar de rios, cidades, estradas, subestações e o mais importante está sendo deixado de lado. O povo. Este é um assunto que para falar sobre ele é preciso despir toda a sensibilidade. O povo é fator de descaso cultural e a miséria existe onde não existe miséria. Parece uma frase de efeito, mas como achar natural que haja fome em uma região que tem o rio Keve. Isto ocorreu quando paramos em uma aldeia próxima e a população cercou nosso carro pedindo comida e notávamos que havia o desespero da fome. Quando secamos nosso estoque de pão, agradecidos eles posaram para fotos. É de espantar o tratamento que o angolano abastado dispensa ao povo humilde, com exceções, é claro. E na base deste sofrimento todo está a mulher. Ela é o ente que trabalha mais. Chega-se ao ponto dos homens levarem a sua mulher para transportar pesos ou fazer outros serviços que, em nossa sociedade, só seriam atribuídos aos mais fortes. Em nossas viagens o que mais se encontram são mulheres carregando seus bebês nas costas, para terem as mãos livres para o trabalho. Elas transportam fardos de lenha, por vezes mais pesados que o próprio corpo, ou as vezes trabalham sol a pino na lavoura. E seus bebês as acompanham em todas estas atividades, amarrados às costas com uma espécie de pano em formato de bolsa presa à barriga.


Jeito feminino de viver no interior de Angola. Posted by Picasa

Tentamos registrar estes fatos, mas desistimos, pois as coitadas têm muito medo quando nós brancos nos aproximamos no meio da estrada. Algumas correm equilibrando seus fardos e seus bebês. Houve um momento em que eu iria tirar uma foto de algum elemento da estrada e ao abrir a porta me coloquei entre uma família. A mãe e um menininho saíram correndo para trás da camionete, gritando desesperadamente para a filha, que havia ficado à frente do carro e trazia um bebê amarrado atrás. Ela gritava para que ela corresse para o mato. Não adiantou meus argumentos de que nada iria acontecer. A debandada foi geral. A imagem dos brancos colonizadores, malfeitores e escravizadores ainda é forte.

Depois de Gabela a estrada fica mais bonita, com uma vegetação de árvores altas e esguias que emolduram a paisagem. A temperatura que chegara a uns 15º na altitude de 1500m, vai esquentando.


Árvore do "Pau Preto"-Para nós o ébano. utilizadas nas esculturas Posted by Picasa


Instituto do Café de Angola Posted by Picasa


Trecho em vegetação exuberante. Posted by Picasa


Trecho bonito na região do café Posted by Picasa

As aldeias vão se sucedendo e as rochas aparecem, no começo timidamente. Depois formando imensos morros que completam a paisagem árida. Vamos descendo a serra mais abaixo chegamos ao rio Nhia, onde havia um desvio, pois a ponte havia sido explodida. No meio da ponte metálica do desvio tirei a foto abaixo, que era o começo dos sustos da guerra que teríamos até o fim do trecho na cidade de Quibala. Observe bem a foto.

Ponte sobre o rio Nhia

Detalhe congelado no tempo.












Após esta passagem chegamos a cidade de Quibala. Houve, claro, o alívio do dever cumprido e a necessidade de conhecer uma nova cidade. A paisagem encontrada foi as que estão abaixo e o susto foi dos maiores.

A cidade era um reduto da UNITA e foi bombardeada pelas tropas do governo em batalhas que a transformaram em uma cidade de escombros. Parecia que os destroços estavam ali para servir de museu a céu aberto. Ela está implantada entre duas cadeias de monte de pedras que serviram de reduto para a UNITA e para as tropas do governo (do lado oposto, é claro). As duas se duelaram com a cidade no meio levando toda a carga de uma batalha exdrúxula como esta. O resultado vocês estão vendo nas fotos.

Via principal de Quibala

Prédio na Via principal de Quibala

Detalhe












Foi impressionante andar por ruas daquela forma. A sensação que pairava no ar era a de que a qualquer momento tudo recomeçaria e teríamos que procurar rápido um lugar para nos proteger. Por indução, até o cheiro da guerra começamos a sentir.
O caso é que os recursos ainda não chegaram para esta região e as histórias de guerra, não são apenas histórias, estão ali presentes, para impressionar não pelos ouvidos, mas com os olhos. E assim não é preciso que ninguém nos conte como tudo se sucedeu. Basta olhar para saber. O que mais impressionava não eram os prédios reduzidos a um montes de entulho. Eram as casas de morada que também estavam destruídas através de balas. Isto era o cotidiano de Angola há cinco anos atrás.

Casas destruídas













Falando em assuntos mais amenos, tive a sorte de participar de um dia histórico para o país. A classificação para a Copa do Mundo. E isto foi o dia de nosso retorno à Luanda. Tivemos que ouvir o jogo pelo rádio, pois estávamos ainda no trajeto. Eram dois jogos que se desenrolavam no grupo. E o adversário era nada menos do que a temível Nigéria, que estava jogando no outro jogo, contra o Zimbawe. Ela não se fez de rogada e partiu logo com 2x0 ainda no primeiro tempo. Angola teria que ganhar sua partida contra Ruanda. Bastava 1x0, pois no confronto direto fora vencedora. O país ficou se roendo com o empate em todo o primeiro tempo e nós com eles. O segundo tempo começou e nada. Chegamos e Luanda estava deserta. Os angolanos que nos acompanhavam nos levaram a um restaurante que ficava em uma ruela de dar medo. Já estava em uns 30 min do segundo tempo e a tensão cortava o ar. Então tudo explodiu, e a população da rua saiu das casas. Garrafas voaram para todos os lados. Não deu mais para chegar no restaurante e tivemos que procurar outro. Quando o jogo acabou a festa começou e até caminhão de lixo virou trio elétrico. A coisa toda é mais selvagem que as nossas comemorações. As rádios ficaram dando boletins para acalmar a população, mas ninguém queria saber. Para chegar em casa foi difícil. Não era uma festa qualquer. O país agora faz parte da elite do futebol mundial e curtiu a esperança de jogar o primeiro jogo da copa contra o Brasil. Assim vão chamar a atenção de, pelo menos, 2 bilhões de pessoas em todo o mundo. Foi assim que o basquete de Angola se tornou referencia na África. Foi o primeiro país a jogar com o Dream Team, dos EUA, na Olimpíada.

As festas se sucederam por todo o país e os angolanos estão considerando este resultado como um despertar de uma nova era para eles. Não estão com pretensões no mundial. Sabem que têm apenas 3 jogos a fazer. Mas querem que seja os três melhores jogos da sua história. E não quer dizer que achem que ganham as partidas, mas acham que podem ganhar com as partidas.´

A história das Copas do Mundo está repleta de casos de azarões vindos da África que fazem o improvável com seleções da primeira linha do futebol. Quem sabe se um dos azarões não é este. Que não seja contra o Brasil.