18 February 2006

Crônica 5 - Estamos em Outubro de 2005 e estamos superlotados de serviço. Ainda não conseguimos ter um domingo sequer de descanso. Às vezes a única hora de relaxamento é a hora da missa, que não perco, pois lá está um dos corais mais bonito que já ouvi. O coral é composto por maioria feminina, mas quando há poucos homens o efeito não é tão mágico. Já percebi que os homens vão mais à missa das 8 horas. Nela o coral fica mais bonito. O efeito é avassalador. As músicas são metade em português e metade nas línguas quimbundo e obundo, e é nestas línguas que a magia se faz. As vozes se entrelaçam em um arranjo fora do comum, fazem uma harmonia tribal que se mistura com a acústica da igreja. As vozes femininas fazem os malabarismos agudos e os homens dão a base certa para que, juntamente com uma percussão de tambores de couro cru, a música nos faça chegar ao paraíso. Mas não é qualquer paraíso, é o paraíso da Mãe África. Eu fecho os olhos e a tentação de ver as tribos, os quimbus, os animais e ouvir seus urros, torna tudo um momento excitante e bastante especial, bem diferente do efeito que realmente a Igreja desejaria obter.

Como a temporada de viagens havia começado, é bom dar uma olhada no mapa de Angola para sentir a distância que foi percorrida por nós em todas estas jornadas. O primeiro mostra a divisão política do país com suas 18 províncias, capitais e cidades. O segundo mapa mostra todos percursos realizados. Este mapa está inserido ao final na 8ª Crónica.



Em 01 de Setembro, a equipe viajou para Cabinda, que é uma província no extremo norte de Angola. Se você observar no mapa Cabinda é aquela língua, separada do resto do país, mas que pertence a Angola e o Governo Angolano não se separa dela em hipótese nenhuma, embora a grande maioria da população de Cabinda deseje a cisão. A razão é que Cabinda está sobre um dos maiores lençóis petrolíferos da África. A descontinuidade do território foi resultado de acordos do passado para que o Congo tivesse acesso ao mar. Toda esta confusão torna aquela região a mais instável do País, atualmente, com a presença maciça do exército garantindo uma ordem precária. A equipe foi escoltada durante todo o trajeto na estrada. Esta levaria a fronteira com o Congo. A equipe atravessou a fronteira, após o término dos trabalhos e conheceu Port Noir, uma uma linda cidade cosmopolita no Congo. O idioma é francês, o que fez o nosso inglês macarrónico ser a língua oficial da estadia.

Em 20 de setembro viajamos para o sul do país. A intenção era fazer o levantamento do trecho entre duas cidades da província do Cunene, região que faz fronteira com a Namíbia. As cidades se chamam de Ondjiva e Xangongo. A segunda intenção era entrar na Namíbia (que fica a 45 quilômetros de Ondjiva) e fazer um safari. O que é bom que se diga, é que a viagem não foi no Iliushin russo (texto anterior). Graças a Deus estávamos nas boas mãos de Heather, nossa comandante sul-africana, boa de manche, que não deixou o avião fretado balançar nos céus nublados de Angola.



Ao chegarmos, fomos conhecer as instalações do INEA e almoçar com os pilotos. Depois fomos à Namíbia, que fica a 70km de onde estávamos. Lá vimos que a opção safari havia sido frustrada, pois as reservas onde existem os animais selvagens estavam fechadas. Resignados tivemos que voltar e deixar esta, que seria uma experiência única, para outra oportunidade. Nossos cicerones chamavam-se Paulo King, diretor provincial do INEA e Júlio Cuanza, Diretor provincial da divisão de obras. Duas pessoas que com o passar do tempo foram nos proporcionando experiências singulares sobre esta região. A nossa equipe era grande, composta por 4 engenheiros angolanos, dos quais um deles era o Dr. Herculano, e três brasileiros, Luiz Maranhão, Sidclei e eu.

Voltando da fronteira, nossos guias nos levaram a um lugar chamado Oihole, que é um memorial ao Rei Mandumbe. Neste local comecei a entrar em contato com histórias das guerras que assolam esta região, por ser ela a fronteira mais próxima com a África do Sul. Histórias passadas e presentes que são estranhas ao nosso universo, mas fazem parte do cotidiano deste país e, principalmente, desta região.



O Oihole era o centro do reino onde Mandumbe exercia seu poder com mão de ferro na primeira década do século passado. Seu reino compreendia a região sul de Angola e o norte da Namíbia. Ao todo possuía 20 esposas. Sua justiça era sumária, mas dando “alguma chance” ao infrator. Em diversas situações, o prisioneiro a ser julgado, era obrigado a subir em uma palmeira das mais altas que tinha no quimbu (vila parecida com aldeias indígenas), longe 500m de distância da cadeira do rei. A uma ordem sua ele teria que descer da árvore e estar na sua frente em um tempo tão diminuto que só os mais preparados conseguiam. Se não alcançassem a morte era iminente. Esta trajetória teve um final trágico quando Portugal e Inglaterra cercaram o reino por Angola e pela Namíbia respectivamente. Após uma feroz resistência, Mandumbe ao ver que iria ser capturado matou seu fiel cão, dois guardas-costas e se matou com um rifle em 5 de Maio de 1916. Na história dos vencidos, eles elegem seus heróis através do exemplo de bravura e pelos ideais de liberdade.

O sítio do memorial é magnífico, altamente convidativo e tem uma atmosfera que leva a contemplação. O mausoléu é esplendidamente bem concebido. Baseado na folha da omufiate, planta que integra a paisagem do sítio desde a época do Rei Mandumbe. Todos ao chegar têm que cumprir um ritual de reverência ao rei, colocando um ramo de omufiate em sua sepultura. Na instauração do sítio, houve a presença dos presidentes de Angola e da Namíbia. O lugar tornou-se um centro turístico com museus, maquetes do local onde Mandumbe vivia com seu estado-maior, bares, hotel, lojas etc.


Caminhos do Oihole Posted by Picasa

Caminhos do Oihole

Folha do omufiate na minha mão e no mausoléu de Mandumbe


Mausol�u de Mandumbe Posted by Picasa


Ritual a Mandumbe (Sepultura) Posted by Picasa

Por incrível que possa parecer, neste local tão distante de nossa terra, encontramos um brasileiro fazendo um documentário. Você tem alguma dúvida de onde ele era. Claro, do Ceará, confirmando a máxima de que o cearense vai para qualquer lugar.


Museu ao ar livre - Maquete do s�tio Posted by Picasa


Uma das maquetes do s�tio Posted by Picasa

Ao chegar em Ondjiva, fomos visitar a cidade e deparamos somente com construções novas de cerca de 2 anos para cá. Foi quando Paulo King nos falou que a cidade fora bombardeada a cerca de 3 anos e os únicos prédios inteiros haviam sido a Igreja (sem telhado) e o hospital. O resto era escombros. Esta guerra foi contra a UNITA (facção opositora ao regime que agora se constituiu em partido político), uma guerra civil que dilapidou tanto economicamente quanto moralmente o país. A guerrilha, apoiada pelos Estados Unidos encheu de minas o interior, transformando o país em uma pátria de pernetas, e matando boa parte da fauna. Só quem a deteve foi a morte de seu líder máximo Savimbi. Após seu assassinato a UNITA baixou armas e Angola entrou neste período de normalidade política que vivemos hoje.


Destro�os-Monumento em Ondjiva Posted by Picasa

No jantar conhecemos Daniel, um senhor que havia sido o primeiro director provincial do INEA após a guerra. Ele nos contou que tomou posse embaixo de uma árvore. Como monumento, a cidade mantém um monte de escombros de um prédio bombardeado, para lembrar o que passaram em uma das guerras mais esdrúxulas que o país viveu. Uma guerra contra o seu próprio povo.

Não há registros de décadas sem que haja algum conflito armado, pois no período pré-aparteid, a África do Sul infernizava os países da África Austral (cone sul) com seu poder belicista, transformando, por consequência, o exército angolano no mais bem equipado, bem treinado e mais respeitado exército de toda a África. Todo o apoio militar foi oferecido pela antiga União Soviética. Os anos 74, 81, 93 foram anos especiais de conflito aqui em Angola. Isso para falar em épocas recentes, pois a independência de Portugal foi conseguida somente no ano de 75 por uma tríade de forças revolucionárias onde se sobressairia o herói nacional Agostinho Neto.A gratidão que os angolanos têm com o Brasil é que nos fomos o primeiro país a reconhecê-los como nação independente.

Em que pese tudo isto, o mais interessante é que o povo reagiu sem traumas a esta sua história recente e passada de combates. O nosso cicerone Júlio fez sua narrativa de guerrilheiro como se fossem passagens naturais da vida de cada um. Histórias de como o caminhão em que ele estava foi jogado a 2 metros de altura por uma mina e ele perdeu um amigo e parte do seu pé. Falou da sensação de vácuo e em seguida do calor insuportável que sentiu antes de apagar. Contou passagens de emboscadas realizadas sobre as brigadas inimigas, as táticas empregadas e de como teve que matar seus adversários quando foi preciso. Contou da dificuldade de se certificar que seus parentes estavam bem após cada bombardeio, quando tudo era escombro e morte por todo lado. Toda esta conversa era passada de forma consciente e, pasmem, com bom humor. O gigante Júlio Cuanza realmente é uma pessoa diferenciada, de uma lucidez e estado de espírito sem similar, mas em todos com quem conversamos nesta região, percebemos a ausência de marcas de qualquer espécie em relação aos conflitos. Tudo nos foi mostrado, locais de vitórias, escombros, destroços de tanques ainda na estrada que estávamos a trabalhar, monumentos em valas onde estavam enterrados 300 soldados mortos em uma batalha contra a África do Sul.


Blindado danificado por um morteiro Posted by Picasa


Durante o trabalho, não consegui identificar nenhum exemplar da fauna original da África, como era meu desejo (nem mesmo o tal macaquinho apareceu), mas na flora eu tive realmente várias surpresas. O clima da região é o tropical seco, com pouca humidade, causando problemas nos lábios e narizes de nós novatos. A vegetação da região, que constava no atlas de Angola, era denominada de chana. Sem saber o que seria começamos a observar certas palmeiras idênticas às carnaúbas, arbustos espinhosos iguais a jurema, cactos semelhantes a palma. Mudando a disposição e a quantidade (a chana é bem mais rarefeita) eu diria que estivera rodando mais de 7000km para encontrar algo parecido com a caatinga. Assim pode-se concluir que aquela teoria da Pangeia, junção dos continentes nada tem de estapafúrdia. A grande exceção nessa semelhança toda está a cargo de uma árvore excepcional chamada Imbundeiro. Esta árvore monumental é parente do baobá e se espalha por toda a Angola/África. Seu tronco pode chegar a 5m de diâmetro tendo exemplares com 8m.


Chana. Semelhante a Caatinga? Posted by Picasa


Imbundeiro do final do trecho. Posted by Picasa

Chegamos a Xangongo onde fizemos uma parada técnica em uma espécie de mercado ao ar livre. Neste local, conhecemos dois pernambucanos, de Angelim, que estão a trabalhar em um projeto de irrigação no rio Cunene, similar aos do rio S. Francisco. Com todas estas evidências, confirmei assim que o nordeste está mais perto do que eu imaginava.


Mercado de Xangongo Posted by Picasa


Herculan, Sidclei e Maranh�o, um bodinho em Xangongo. Sobreviveram.. Posted by Picasa


Encontro com conterr�neo de Angelim(camisa azul) Posted by Picasa

Após a parada, que levou mais tempo do que imaginávamos devido a confraternização com nossos conterrâneos, fomos ter com o governador da província do Cunene, Pedro Mitunde. Ficamos sabendo que o próprio governador foi vítima da guerra, sofrendo um atentado de uma mina preparada embaixo de sua mesa de trabalho. O resultado foi uma perna mecânica que o acompanhará pelo resto de sua vida.


Governador da prov�ncia do Cunene Posted by Picasa

Chegamos então a travessia do rio Cunene. É um rio portentoso que faz o papel do rio S. Francisco, com cheias que se espalham em um imenso vale, se constituindo em um impulsionador econômico para esta região seca. Infelizmente as histórias das guerras continuaram. A ponte de 900m que era usada para vencer o Cunene foi dinamitada a cerca de 4 anos por um guerrilheiro maluco da UNITA. A ponte é um alvo estratégico, pois esta já é a segunda vez que ela é dinamitada.


Rio Cunene pela ponte destru�da. Posted by Picasa


Banho no Rio Cunene Posted by Picasa

Uma última surpresa nos aguardava ao final do dia. Esta foi de ordem emocional e proporcionada por um dos membros da equipe. Após o almoço, rodamos mais 20km até uma fazenda. Esperávamos por uma experiência que poucos haviam tido. Até então eu estava tirando todas as fotos, mas a partir daí eu passei a máquina para Sidclei, pois iria presenciar um encontro entre pai e filha após trinta anos de separação, ou seja era a primeira vez que se veriam, desde que a menina havia nascido. A história contada por ele é que havia namorado a mãe da menina quando da implantação da estrada. A garota nasceu e em meio a uma guerra e outra perderam o contato. Procurou muito por elas este tempo todo, mas nenhum sinal de mãe e filha. Casou e a vida passou. Teve 4 filhas e ao dar uma entrevista na rádio sobre a situação das estradas no país, foi reconhecido por uma das irmãs (por parte da mâe) da moça. Ela entrou em contato com ele e assim nós estávamos ali para presenciar este reencontro. Claro que os comentários foram muitos. A mim, achei que não cabia julgar uma situação desta, sem estar envolvido nela.

Quando o carro chegou, a moça que desceu era bonita e estava vestida com blusa e um sarongue típico do interior de Angola, estava descalça. Ao descer o pai se identificou e não houve nenhuma das cenas fortes que esperávamos. A moça parecia que não acreditava no que estava se passando, por mais que o pai se esforçasse em explicar. Foi oferecido refrigerante a ela e soubemos que era analfabeta e morava numa espécie de “senzala” da fazenda. Tinha 2 filhos uma menina e um menino. Aquela situação perdurou até a hora de irmos, quando o pai soube que não havia comida em sua casa. Isto emocionou a todos e demos tudo o que tínhamos nas duas camionetes da expedição, o que não era pouco. O encarregado da fazenda nos disse que infelizmente ela não iria lucrar muito. Só aproveitaria o que comesse ali na fazenda, pois o marido e os outros homens da senzala vão se apossar de tudo o que ela levar. Herculano jurou que iria procurar compensá-la pelo tempo que se manteve ausente, e tentaria tirar ela daquela situação tão difícil.

Ao nos afastar, quando aquela figura esguia andava para o carro que a trouxera, o rádio do carro de Paulo King, que passara todo o dia tocando músicas brasileiras e caribenhas, tocava uma música com um coral tribal, parecido com as que eu ouço na Igreja. São histórias da Mãe África.


Volta para Luanda, com J�lio e Paulo King Posted by Picasa

09 February 2006

Crônica 4 - Estamos na iminência de viajar para Huambo, uma capital de uma província de mesmo nome (província é o mesmo que estado da federação). Iremos fazer uma vistoria em uma estrada de 85km de extensão. Este local fica no grande planalto africano, distante 700km de Luanda, com altitudes acima dos 1200m. Deve ser frio e para chegar lá precisaremos ir de avião, por causa da precariedade das estradas, ou então sacolejar durante toda a distância. Esta viagem já foi adiada três vezes e acho que possivelmente poderá se adiada novamente. Bem, estou esperando algo semelhante a vida de Tarzan, ou quem sabe me tornar um Jim das Selvas. Leões, elefantes e hipopótamos têm povoado meus sonhos nestas últimas noites. Falando sério, é preciso tomar cuidado para não se afastar da estrada, pois existem minas ainda do tempo da guerra implantadas pela UNITA. Espero que ao menos dê para ver algum macaquinho balançando na árvore.

Tenho pensado também em uma história que nos foi contada por Diniz, um dos engenheiros de uma grande construtora aqui em Luanda. Ele e Eugénio, outro engenheiro da empresa, tiveram que ir a Benguela, capital da província de mesmo nome, no litoral central de Angola. Ao chegar ao aeroporto viram que as opções de vôo eram poucas. Muito determinado, Diniz estava decidido a chegar logo em Benguela, pois haviam negócios urgentes a serem concluídos. Procurou informações e soube que existia uma empresa que teria um avião para o seu destino dentro de uma hora. Ao chegar ao balcão soube que o vôo estava lotado. Nosso amigo armou tal confusão que o atendente irritado colocou os dois para viajar. Na hora indicada foram transportados em vans e não em ônibus como é de praxe no aeroporto. Os dois começaram a desconfiar que entraram em uma fria quando de longe viram o avião.

Era um Illyushin, avião russo velho e fumacento, que Diniz viu uma vez no aeroporto e prometeu nunca viajar nele. Ao chegar perto aparelho, Diniz achou estranho que o pessoal que os conduzia olhava para os lados incessantemente e bastante ansiosos. Tomou um susto quando viu que a escada que levava ao interior do avião era de madeira. Eugénio na fila para subir sugeriu: - Vamos embora, este negócio não está dando certo. – Que nada, eu agora vou de todo jeito, respondeu Diniz lembrando-se da briga que tivera no aeroporto. Subiram e lá dentro viram que o avião não tinha forro e estava completamente carregado. Era um cargueiro e os passageiros iam em pé, procurando um local que mais lhe conviesse. Não havia como se amarrar no interior daquele brutamontes.Os dois escolheram ficar perto de umas camas que estavam em pé e o avião começou a taxiar. Perceberam na hora da decolagem que as camas estavam soltas, e pior, empurrando-os contra uma pilha de pneus de trator. Eugénio teve a brilhante idéia de subir na pilha e ficar no meio dos pneus, mas quando chegou lá em cima, viu que outros três já tinham pensado da mesma forma. Diniz só pensava que ia morrer do sufoco e imaginava no velório os amigos conversando: - De que morreu? – Foi um acidente aéreo. – Acidente!? Onde o avião caiu? – O avião não caiu ele, aterrisou normalmente. Ele morreu estrangulado por uma cama que estava solta no avião.
Após 40 minutos o avião aterrisou em Benguela e os dois desceram completamente destroçados pela viagem. Este tipo de viagem existe por aqui e os desavisados devem se prevenir. Estes aviões arreiam a traseira para que possam ser carregados. Na República do Congo, o ano passado, esta traseira arriou a uma altitude de 10.000 metros. Todas as 40 pessoas que estavam dentro, na mesma situação de Diniz e Eugénio morreram. É por esta e pelas outras que eu vou querer saber muito bem que tipo de avião é esse que vai me levar para Huambo.

07 February 2006

Crônica 2 e Crônica 3 - Apesar de estar aqui a quase um mês, tenho me impressionado ainda com o trânsito. A minha última constatação foi a de carros com mão inglesa (Motorista do lado direito) trafegando nas ruas. E não é um caso aleatório, uma boa percentagem é assim. Estes carros vêm da África do sul, pela Namíbia, que também possui mão inglesa. Agora imagine a confusão que não deve ser para o motorista. Aqui não existe taxi e o sistema de transporte coletivo é precaríssimo. Se quisermos nos locomover sem carro, a opção são as velhas e conhecidas “vans”, que aqui se chamam de “Kandonga”. Aqui pelo menos elas são padronizadas, em menor número que em algumas das principais cidades brasileiras e (estranho!) um pouco mais organizadas. Tudo isto contribui para o aumento de carros nas ruas e, por consequência, mais engarrafamentos. Muito mais estranho é que neste período que estou aqui constatando este caos urbano, só vi uma batida e pequena, por sinal.

Não tenho tido problemas com as pessoas. No nosso nível todos são bastante cordiais e prestativos, mas quando o nível baixa muito (trabalhadores braçais, desempregados, ambulantes...), o racismo se acende. Já ouvi diversas vezes frases meio ameaçadoras como “Olha os Pulas!” (Pula é o pejorativo de branco) e coisas bem piores. Combinamos não sair sozinhos.

Aqui todo mundo fala mais de uma língua. O nosso administrador fala inglês e francês fluentemente e está aprendendo japonês. Angola é completamente rodeada por países de língua alheia ao português. Fala-se inglês a Sul e Oeste e francês no Norte. No interior, o país possui mais cinco línguas nativas. Entre elas o Kimbundo, e as línguas banto, cuja peculiaridade é ter todos os verbos iniciados com o prefixo cu (cuidado com a gozação). Então aprenda, Curibota é falar abrobinha, Cuimbila é cantar... Existe um engenheiro aqui do Inea, Engenheiro Herculano, que fala todas as nativa e algumas padrões incluindo alemão.

Uma das coisas engraçadas é que, como vocês notaram, seu título vira propriedade. Você é conhecido e chamado por ele: Engenheiro Sicrano, Arquitecto fulano ...
As opções de divertimento ainda não foram descobertas por nós que moramos no centro da cidade e estamos desgarrados do restante do pessoal. Estes moram no Condomínio Talatona, local de moradia da maioria dos brasileiros. O motivo é que estamos em um ritmo meio que alucinante, trabalhando de domingo a domingo. Este final de semana, como é aniversário de Maranhão, vamos tentar tirar ele do trabalho para fazer uma comemoraçãozinha. Apesar disto já identificamos um “Snack bar” (bar de tira-gostos) que serve uns petiscos interessantes: o choco é um polvo a milanesa; pica-pau, uma espécie de filé com fritas e lagostas de diversos tipos, regados a cerveja EKA (uma delícia!). Mas o melhor em comida de Angola são os peixes, principalmente o cacusso que é um peixe do mar pequeno, mas saboroso. Fui a um restaurante em que eles preparavam na brasa com sal grosso. Foi o melhor que eu já comi aqui. O pior foi uma tal de Muamba com gimguba. Uma pergunta! Você já teve oportunidade de ter uma gimguba na boca? Não, pois eu já. E fotografei por sinal. Só não divulgo para não ferir os pudores de alguns. Vamos as explicações, gimguba é o próprio amendoim, só que neste prato ele vinha em forma de uma gororoba. Existe outra gororoba feita de mandioca prensada. A consistência é a daquele grude que fazíamos quando criança para montar pipas. Este exemplar da comida angolana é também chamado de Funge Bobo. O prato final é quando estas duas adornam um frango cozido. Esta é a Muamba com gimguba. Neste dia só comi o frango.

Adorei a observação de minha amiga Luciana, quando leu o meu último e choroso e-mail. Ela achou muito engraçado que depois de quase 120 anos da abolição da escravatura no Brasil, sai um branco daí para sofrer de banzo na África. Situação inversamente igual a dos negros escravizados na nossa “Pátria Mãe Gentil”. Sorte a minha que a inversão não foi totalmente completa, senão iria ser mais engraçado ainda.


Crônica 2 - 02 de Setembro de 2005 - Eu esperava escrever bem mais, mas as coisas estão muito corridas aqui, e não estou tendo muitas oportunidades. Se passou a primeira semana da empolgação e terminou a segunda. Estamos iniciando a semana do banzo, que está chegando no nível muito alto. Estou meio perdido com o português de Portugal que se fala aqui. Algumas palavras não são acentuadas, o acento circunflexo é substituído pelo agudo e existem denominações diferentes para certas coisas (banheiro é casa de banhos), principalmente as técnicas (concreto é betão, trecho de estrada é troço, banqueta é lancil e por aí vai...) O mais engraçado é a ausência de gerúndio, o que os angolanos insistem em dizer (junto com os portugueses, é claro) que a sua utilização banaliza o verbo, não sendo a forma correta de falar o português. Eu acho que usar só o infinitivo> é aprisionar o verbo ao verbo estar, e aí sim é banalizar, mas isto é discussão para uma vida inteira. Nela eu fico com as impressões do escritor angolano José Eduardo Agualusa, que foi um dos sucessos na última Feira internacional de Parati. Segundo ele para ler os cânticos dos Lusíadas de Camões, a métrica portuguesa não serve, tem que ser a brasileira. 1X0 para nós dentro da casa do adversário. Mas, apesar disso, acho que quando vocês me 1encontrarem novamente, estarei a falar iguala um gajo, pois, pois...

Aqui a guerra civil prejudicou o país no que ele tinha de desenvolvimento, inclusive na mentalidade do povo para certos aspectos..O regime comunista impretado depois da independência de Portugal em 75, antes da guerra civil, além de encher a cidade com nomes dos expoentes libertários nas ruas(moro na Av. Salvador Allende e trabalho na Av. Lenin, tendo também ruas Martin Luther King, Fidel Castro, entre outras...). Assim fico devendo as fotos da cidade, mas, devido a tudo isto, há uma incompreensão do povo angolano com fotos que nós "brancos" tiramos. Eles não vêem com bons olhos (aliás vêem com maus olhos mesmo), pois, além de não gostarem devido ao tempo do comunismo, eles ainda acham que os consideramos exóticos e isto eles têm pavor. Fomos a uma praia este fim-de-semana e ao descermos com a máquina, já havia uma confusão no bar próximo, pois um casal de chineses queria tirar fotos com a meninada e a confusão rolou. Foi uma pena, pois o pôr-do-sol aqui é na praia estava maravilhoso, com um Sol de um brilho meio metálico (aqui tudo é bem diferente!).

Por-de-sol na praia.



Vista do Prédio da Chevron na minha Rua - Salvador Allende

Quando saio às ruas ainda me espanto com a qualidade dos carros que trafegam. Todas as vezes vejo algum que nem sonhamos encontrar aí. Uma Nissan zerada cabine dupla, o pessoal chama pelo termo prejorativo de "carrinha". Carro para eles é muito mais. E que carros. Ainda não tive condições de comprar nada, mas em um serviço que fiz no istmo de Luanda, que todos chamam de "Ilha" (um dos lugares mais bonitos da cidade), parei numa loja de arte, onde havia umas esculturas em madeira retratando o povo do país e os animais. Eram perfeitas! O preço salgado. As mais viáveis chegam a U$ 30,00. Existe um mercado de artesanato aqui chamado Benfica. Preciso visitá-lo. Esta é uma fase crítica na minha estadia aqui. Espero conseguir superá-la.

Baia de Angola - Vista da Ilha

05 February 2006

Chegando à Luanda

Crônica 1 - 01 de agosto de 2005 - Este inusitado aconteceu, nunca esperei estar trabalhando tão longe de casa. De repente o outro lado do mundo ficou tão perto e … estou agora vivendo nele. Deixar tudo foi muito difícil, procurei não pensar muito, pois assim não iria. Cada despedida era uma faca rasgando. Passei por todas e elas foram ficando progressivamente mais difíceis, até a última que foi com Matheus, meu filho… Esta nem é muito bom falar, apesar dele ter sido forte e ajudado muito.

Como tudo caminhou com uma determinação contundente, só me restou reconhecer o desígnio de Deus por traz de tudo e encarar toda esta revolução nas nossas vidas com a coragem dos que esperam dias melhores.

Não consegui dormir na viagem à noite devido ao meu estado de excitação e, como eu estava no corredor, também graças a truculência das aeromoças angolanas que não conseguiam passar por mim sem bater, revelando um pouco de despreparo em suas funções. Não se enganem, o avião da TAAG – Transportes Aéreos Angolanos não tinha nada de maltrapilho. Era um 747 novinho (aquele da corcunda na cabeça). Esta foi a primeira surpresa com que me deparei aqui nas terras africanas.

Ao aterrissar verifiquei que por enquanto não havia surpresas. Luanda é uma cidade que até aqui, não inspira muitas admirações, pelo contrário. A cidade não tem uma arquitectura bonita, os prédios são colados um ao outro, sem afastamento lateral. Existe uma onda de poeira no ar, pois as edificações e os veículos ficam impregnados de uma cor marrom. Há uma névoa no horizonte que mal deixa se ver o céu e o Sol. É a estação das chuvas. Isto vai permanecer até o dia 15 de Agosto (tem data marcada para acabar). A temperatura é bem agradável, em torno de 23º.

A energia vacila frequentemente, sendo necessária a utilização de geradores para mantê-la. Com isto os administradores municipais não se animam em instalar semáforos, já que eles não funcionam. Desta forma existe um caos total no trânsito, fazendo com que, para qualquer locomoção, se avalie se é realmente necessária. Ainda não se partiu para uma solução usando células solares, embora projetos de implantação já tenham sido desenvolvidos.

As surpresas no trânsito não ficaram só nisto. Angola não tem indústria automobilística, e a diversidade de marcas e tipos dos veículos são imensas devido a importação. Só que nesta diversidade, muito mais da metade dos veículos são de marcas e tipos dos mais caros que já vi. Mercedes, Mazda, BMW, Toyota, Volvo, de tipos que não existem no Brasil, provando que existe gente com muito, mais muito dinheiro. O mais interessante é que volta e meia encontramos estacionados veículos semi-novos empoeirados, que presumimos, estão parados por falta de peças. Este problema chega a tal ponto que as ruas ficam com dificuldades de vagas para estacionamento.

Ainda não tive condições de fazer nenhum juízo do povo angolano. A princípio o que demonstram é um distanciamento calculado. Fomos alertados na empresa para o dissimulamento dos habitantes, devido as dificuldades que estes já passaram. Nos primórdios foram escravizados por irmãos vizinhos, depois foram submetidos a imperadores ditadores que pouco mudaram sua condição. Agora, depois da guerra, se começa a vislumbrar algo como um estado de direito, mas a população ainda não se libertou da opressão e não se sabe se isto vai ocorrer. Por isto se acostumaram a ser dissimulados e a espionarem muito (de verdade, telefones grampeados são comuns!!!).

As minhas condições são excelentes, o apartamento é de primeiro mundo, apesar de fora estar parecendo um cortiço. As condições de trabalho não ficam a trás. Só o que aflige é a saudade.