05 April 2006

Crônica 7 – 10 de Novembro de 2005 - O fantasma da “viagem para casa adiada” voltou a me rondar novamente. Na hora da entrada no avião, vem o chamado para uma tremenda necessidade de última hora. – “Não, não dá para viajar agora”. E aí a decepção se mistura as frustrações de todos os que aguardavam com ansiedade. Tudo ficará para Dezembro.

Como o que não se pode mudar é melhor se conformar. Vou virar a página desta viagem que não veio e falar daquela que passou.

Finalmente a província que estava em nossa mesa de planejamento várias vezes, e várias vezes sumiu devido a prioridades diversas, assomou abaixo das asas do 727 velhíssimo da Gemini Linhas Aéreas Angolanas (acho que deve ter sido algum refugo antigo da VASP, brincadeira!).

Huambo, que fica a 800km de distância de Luanda, na região central do país, nos recebeu de forma muito fria, do alto de seus 1500m de altitude, o que fazia com que a temperatura ficasse em torno dos 15º. A cidade causou melhor impressão, na saída do aeroporto, do que aquela confusão quintomundense que eu vi nos primeiros momentos em Luanda. Ruas largas, muito verde com árvores margeando as avenidas e bosques gramados.

Vias da Cidade.

Vias aprazíveis.

As províncias de Huambo e Bié foram as que mais sofreram na guerra civil e infelizmente este assunto volta a tona embora eu já esteja um pouco cansado dele. Ela é uma cidade de porte, destinada a ser a segunda capital do país, mas foi sitiada pela UNITA. Teve 53 dias ininterruptos de guerra urbana e as marcas estão sempre à vista. Nas residências imponentes ainda abandonadas e marcadas por metralhadoras, em edifícios de 10 andares atingidos por morteiros e até nas pobres estátuas dos parques alvejadas por balas.

Ecos da Guerra Civil - Prédio atingido.

Ecos da Guerra Civil - Estátuas alvejadas.

Na cidade de Huambo a fruta da época são os morangos. Uma diferença dos que vemos no Brasil, é que os de Huambo são pequenos, mas muito mais saborosos. Nos chegam através das zumbeiras, que os carregam na cabeça embalados em cestinhas de palha.

Delícia de época! - Morangos.

Rumamos em direção a província do Bié, para a sua capital chamada Kuito. O nosso objeto de trabalho nos revelou muitas surpresas. A estrada passa por esplêndidos monumentos rochosos que brotam em prados de vegetação rasteiras, ou em florestas abertas com eucaliptos três vezes maiores e mais robustos do que aqueles que conhecemos.

Pedra do Alemão.

Pico do Luviri na estrada do Rio Keve-Alto Hama.

Florestas de Eucalíptos.

Por-do-Sol na floresta.

Um deles se refere ao Ombala Kandungo (reino de Kandungo, na língua Ombundo… gostou?). Este é outro rei com história de resistência aos colonizadores portugueses. O monumento é um monte rochoso repleto de túneis e saídas falsas construídas pelo rei, que enganaram os invasores por muito tempo. A história de Kandungo é também interessante, como a de Mandunbe (Crônica 5), pois é uma mistura de luta, ardil e paixão. Uma de suas sete esposas, com ciúmes das preferências do Rei, informou toda a sua estratégia para os colonizadores portugueses e Kandungo foi capturado e morto. O monte então passou para história como um monumento à sua resistência. Mais uma história heróica dos heróis vencidos.

Monumento Ombala Kandungo (Reino de Kandungo)


Mas as surpresas da recente guerra civil voltaram a nos encontrar. Blindados alvejados por foguetes (alguns estavam com a parte de cima completamente separada da parte inferior, onde ficam as esteiras), outros paralisados por minas (com buracos na parte dianteira), estavam no mesmo local onde foram atingidos. Estas lembranças inertes estão por toda a estrada que leva a Kuito.

Lembranças da guerra.

Em um dado momento fomos advertidos para não sair da plataforma da estrada. Vimos então as marcações do serviço de desminagem. Este trabalho tem o apoio de ONG´s de vários países (tivemos a oportunidade de conhecer alguns técnicos destas organizações) e tem o objetivo de livrar a população do perigo das minas. Aqui e ali, onde parávamos para o trabalho, identificávamos crateras produzidas por estes artefatos traidores, que mataram muito e transformaram o país em uma pátria de pernetas. O que víamos eram as marcações deixadas pelas equipes ao liberarem as áreas. Mais à frente as marcações mudaram e eram mais ameaçadoras, com marcos implantados que mostravam o sinal de perigo (a popular caveira), indicando que aquela área ainda estava sendo trabalhada. Após alguns quilômetros vimos os heróis responsáveis por este serviço. Tomei um susto ao reparar que com eles não havia nenhum veículo potente que explodia as minas usando largatas de alto alcance, o que conferiria ao serviço a segurança necessária, como eu havia visto em um documentário. As equipes simplesmente vasculhavam uma área equivalente a 30m da estrada com detectores de metais e proteções que iam dos genitais até o peito, acrescido de um capacete para proteção da cabeça.
Perguntei a Inácio Satambue, director provincial do INEA, sobre a segurança destas equipes. Ele me disse que a metodologia usada é que define esta segurança, o que não impede vez por outra, de ocorrerem acidentes fatais.

Marcações dos campos minados.

Equipes fazendo a desminagem.

Prosseguindo em direção a Kuito, já não haviam mais equipes trabalhando. Só as marcações de áreas minadas.

Ao chegarmos a capital do Bié, vimos o que eu já esperava. Aqui a guerra foi bairro a bairro, rua a rua, casa a casa. A sensação que nos dava é que um exército de malucos haviam se apoderado de metralhadoras e lançadores de foguetes e gastado um navio de munição atirando a esmo na cidade. A impressão foi pior do que a de Quibala (Crônica anterior), por se tratar Kuito de uma cidade maior. Havia marcas de balas até em cima de caixas d’água, em monumentos e também em parques infantis.

















Prédios destruídos por mísseis, residências e edifícios alvejados por morteiros, imagens que causam impacto e angústia.

Saindo desta mostra de selvageria, o que achei fantástico foi a constatação do moral da população que tem uma fenomenal capacidade de se superar. Eles falam de tudo, contam histórias escabrosas, participaram ativamente das operações, enterraram seus mortos nos quintais das casas (pois não podiam sair nem para isto), dividiram seus parcos alimentos que eram comidos sem sal. Mas estes fatos não fizeram com que eles se traumatizassem, parassem no tempo e nem deixassem de ter uma visão de progresso em relação a sua região quando tudo terminou. As cidades vão aos poucos se reconstruindo e com elas as esperanças da população.



Restauração dos Prédios Públicos

Fomos ainda a Alto Hama e de lá a ponte sobre do rio Queve que foi destruída três vezes, interrompendo a ligação do norte com o sul do país.

"Miúdas" de Alto Hama.

Ponte sobre o Rio Keve - Lugar Perigoso

Como se não bastasse a avalanche de surpresas não parou por aí. Conseguimos fazer todo o trabalho em menos tempo que o planejado. O problema é que nem tudo segue a nossa velocidade e o avião sucatão que nos traria estava em manutenção. Teríamos então que esperar até a data combinada para o retorno. Não sei se a decisão foi acertada, mas voltamos os 800km rodando. Destes com certeza 500km estavam em péssimas condições. Parece maluquice, mas ao final não deu para se arrepender. Teria perdido uma das mais fantásticas paisagens que já vi. O por-do-sol na serra do Londouimbali, região onde se escondia Savimbe, líder da UNITA. As fotos que mostro não têm a mínima capacidade de retratar a grandiosidade do espetáculo. Os contornos azuis da montanha, contrastavam com o verde da padraria e os raios solares. Simplesmente era preciso estar lá para perder o fôlego.



Serra de Loundoimbali.



Mãe e filha em Loundoimbali. Ela pediu para eu tirar a foto da menina.

Outra razão para não se arrepender foi conhecer Lobito, uma cidade litorânea que finalmente preservou toda a sua beleza dos reveses da guerra. A cidade é aprazível por seu planejamento bem cuidado, com avenidas largas, e muita disposição em se tornar um lugar atrativo aos turistas. Tem uma bahia com marinas para esportes náuticos, uma orla preservada da ação dos vendedores e com uma consciência ambiental bem aparente, sobretudo na preservação das praias. A avenida beira-mar é povoada por mansões em toda a sua extensão o que a torna um verdadeiro cartão postal. Na região de Lobito e Benguela, capital da província de Benguela, estão grande parte das petroleiras e indústrias extrativistas. Ficamos contentes em encontrar uma cidade onde as assombrações dos conflitos não têm vez em nenhum lugar.



Barco que ajudou na fuga do Presidente de Angola.

Porto de Lobito

Prédios Públicos em Lobito.

Em nenhum não, menos em um… Chegamos a Lobito às 22:00, através da EN 250, uma das estradas em piores condições de trafegabilidade que já encontrei. Procuramos um lugar para jantar e quando encontrar um hotel já passava das 24:00hs. Aparentemente o Grande Hotel era imponente com seus quase 8 andares. Chegamos na portaria, bem cuidada, com três elevadores, sendo um daqueles antigos tipo gaiola. Estranhei que o recepcionista estava de camiseta e com uma cara meio assustada de ver tanta gente chegando de uma vez àquela hora. Como o cansaço era grande, não dei bola para isto. Continuei a estranhar na hora de preencher a ficha de hospedagem. A ficha já estava preenchida. Era a primeira ficha de hotel reaproveitável que eu já vira. Eu tinha que escrever onde sobrava espaço. Perguntamos se havia ar-condicionado e o recepcionista respondeu afirmativamente. Os nossos quartos estavam no 4º andar e eu comecei a não gostar quando fomos informados que os elevadores estavam quebrados. Tivemos que subir os quatro andares com as bagagens. Mas o mais inusitado foi quando entramos no quarto. Ele parecia com as decorações dos anos 60/70. O banheiro estava cheio de tonéis d´água a banheira estava repleta de uma água amarelada. Não havia água encanada. O banho que todos estavam sonhando transformou-se em banho de repelente para mosquitos. O arcondicionado não estava ligado na tomada. Nem eu me arriscaria a ligá-lo, com medo de provocar um incêndio, tal o emaranhado de fios, alguns desemcapados. A vontade de desaparecer daquele lugar foi grande, mas o cansaço era maior e quando eu pensava em ter de descer todas as escadas com as malas às 0:30 horas para procurar hotel. Desanimei!!! Encarei a tal pocilga. O que vale é que sou bom de cama, dormi como uma pedra. Outros ficaram acordados boa parte da noite e houve gente que achou o lugar tão esdrúxulo que esperou algum Ogro-de-um-olho-só sair de dentro do armário. O coitado vigiou a noite toda. No dia seguinte desci para as nossas provisões e peguei água mineral para escovar os dentes. Banho mesmo só em Luanda a 500km de distância.

O maravilhoso "Grande" Hotel

Usando a escova fora do "Grande" Hotel.

Como eu estava dizendo, o único lugar em Lobito onde houve guerra civil foi no esplendoroso Grande Hotel.

Rio Quicongo - Volta.

3 comments:

Anonymous said...

Olá Fernando!! Fiquei surpresa com a sua visita ao meu espaço... obrigada pelo comentário....Eu encontrei o seu blog quando estava a fazer uma busca na internet, e aos poucos fui lendo...acho que eu ainda nem tinha o meu blog...e só depois de ler mais atentamente é que comecei a deixar comentários..

Acho que essa tua Crônica dá um bom livro de suas experiências e aventura em Angola.

Eu adoro viajar de avião, mas confesso que tenho medo dessas máquinas antigas e sucateadas...

Bjs

Fernanda said...

Olá Fernando
Ainda bem que visitou o meu blog. Estive já a viajar pelo seu... Vou ler tudo desdo o princípio ao fim. Tem imagens espectaculares, que antes nunca tinha visto. Eu vim de Angola em 1975, sou casada com um "Bailundo" ele era já 3ª geração em Angola. Esse país que nos enfeitiçou até à morte. Amo Angola como sempre amei. A minha cidade de eleição é Sá-da-Bandeira, assim escrita como há "séculos". Parabéns pelo notável trabalho.

Luri Barbosa said...

CHEEEEFEEEE, você precisa escrever um livro! Tenho certeza que suas Crônicas de Luanda fariam sucesso no mercado editorial.

Abraço!